O corpo
De súbito, levantou-se como quem leva um choque ou acorda de um sonho. Tinha em si uma percepção de olhos bem abertos e testa franzida, daquelas que demonstram imensa surpresa, e na boca a ausência de palavras misturava-se a um gosto metálico e amargo, além de um peso por todo o corpo. Corria por entre aquilo que entendia por veias, ossos e carne, uma sensação diferente de tudo o que já sentira antes, por isso permaneceu em pé, estático, o que não lhe impedia um milhão de ideias e pensamentos. A única certeza que conseguia concluir em resposta era a dúvida e a perplexidade daquilo tudo.
Pensava que antes de dar algum primeiro passo em direção ao que parecia ser uma porta, precisaria saber o que fazia ali e os acontecimentos que levaram àquele momento, mas não lhe vinha lembrança alguma, só mesmo a incompletude e a clara impressão de não pertencimento. Não se sentia preso, mas sabia que não estava livre, e por mais que estivesse envolto a essa aura confusa de ser ou não ser, decidiu ir adiante, pé ante pé, como se esperasse que o movimento enfim trouxesse alguma lucidez.
Não trouxe. Não trouxe porque a medida que se julgava fazendo sinapses para concluir o movimento de coordenação motora para o passo, percebeu algo que foi custoso acreditar: não enxergava os pés.
Inicialmente sentiu como se o coração fosse sair pela boca. Pensou em como era possível estar ali em pé sem possuir pés. Quis lembrar ou saber como os perdera, e conforme foi se perguntando e tentando esclarecer essa perda, foi percebendo e notando que não eram tão somente os pés que lhe faltavam, bem como pernas, mãos, braços e todo o conjunto corporal. Essa tomada de consciência de não existir nada abaixo e também acima dos olhos foi um misto de sentimentos, desde o desespero mais agudo ao cômico mais pastelado.
Até que em um dado momento pôde se virar no espaço vazio e a coisa estava ali. É verdade que viu mesmo sem ter olhos, visto que era claro que não possuía nada de cunho carnal, mas sabia que via. Fitou como quem se concentra pra ver através da neblina e constatou: um corpo!
Ficou ali mirando e admirando o corpo não se sabe por quanto tempo. Olhava, analisava, e em meio a essa contemplação foi percebendo um corpo nu, deitado e sereno, sem qualquer tipo de expressão de dor ou alegria. E mesmo com toda sua imobilidade o corpo tinha seu encanto. Percebia à distância os olhos fechados e uma paz que comove.
Nesse instante, sentiu correr pelo seu rosto inexistente uma lágrima também inexistente e gelada. Foi deixando-se tomar pela paz do corpo que via e quanto mais se inundava de paz, mas leve se sentia. Foi olhando e soltando. Foi olhando e desconectando. Foi olhando e rarefazendo. Foi olhando, até que sumiu no ar.
E na tarde chuvosa do mundo real, naquele exato momento, ouviu-se um ruído contínuo que vinha do monitor de sinais vitais e a voz grave do médico plantonista:
- Hora da morte: 14h47!
tq
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